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Garoto negro anda pela sua quebrada, vira uma esquina e dá de cara com uma viatura,
dois policiais saem do carro com suas armas apontadas para o garoto, encosta na
parede, com a arma apontada na sua cabeça ele toma um enquadro. CORTA.
Diretor branco manda ator negro se virar, manda o cinegrafista chegar perto e apontar sua
câmera pra cabeça do ator negro enquadrando ele em primeiríssimo plano, aperta o
REC.

Shot tem dois significados em inglês, tiro (de arma) ou gravação (câmera).

 

_ Cena 1, plano 6, tomada 12 – Grita o rapaz da claquete.
 

_ Ação!
 

Câmera está na altura do chão, um corpo cai na frente do enquadramento direto no chão,
lente desfoca o corpo e foca detalhe do sangue escorrendo ao lado do corpo. CORTA.
Diretor branco está em êxtase, depois de ficar horas tentando fazer tomadas perfeitas,
aquelas em que tudo no enquadramento estava minuciosamente controlado.
Ator negro está quase em estado de choque, vai voltando aos poucos a si, pois antes da
cena fez um aquecimento de exaustão e estava física e psicologicamente esgotado.

 

Ator negro na volta pra casa, ao caminhar pela rua próxima de sua residência é parado
pela polícia e toma um enquadro “de verdade”, apanha de verdade, é humilhado de
verdade.

 

Na estreia do filme num grande cinema, ator negro se vê na cena do enquadro, durante a
cena ouve-se um melancólico piano ditando o ritmo em slowmotion dos planos de campo
e contra campo do policial e do jovem negro, a lente 50mm com a abertura em 1.4 foca e
desfoca continuamente dando uma sensação de tontura, o ritmo dos cortes aumenta, os
planos ficam cada vez mais próximos, ao mesmo tempo que a tensão da peça de piano
aumenta, ouve-se o som de um tiro e a tela fica preta, a música cessa, silêncio, fade in e

o corpo cai no chão (também em slowmotion), vemos o sangue escorrendo em plano
detalhe fade out. Luzes se ascendem na sala de cinema, todos os presentes se levantam
e aplaudem.

 

Diretor branco sobe no palco e é ovacionado.
 

Ator negro está atônito, tenta recordar a dor que sentiu no baço quando foi golpeado pelo
policial “real”, tem dificuldade de lembrar, pois a trilha de piano não sai da sua cabeça,
assim como o plano em que ele está caído no chão.
Nos meses seguintes, cada vez que via o filme o ator negro tem a sensação de que está
vendo um cadáver dele mesmo nos sucessivos enquadramentos do filme, e sentia um
profundo estranhamento quando o público lhe dizia coisas como: “como você consegue
dar tanta vida a personagem! Como o filme é realista!”

 

Ator negro está numa rua vazia à noite, vê policiais dando um enquadro em dois meninos
negros. Em casa pega uma câmera guardada numa caixa, olha pelo viewfinder, se
imagina gravando uma cena em que um menino negro saca uma câmera e aponta para
um piano de calda que vai sendo destruído como se estivesse sendo alvejado por uma
metralhadora.

 

A câmera enquadra simetricamente na arquitetura do cenário, ao melhor estilo ponto de
fuga infinito de Kubrick, o piano completamente destruído. CORTA PARA BLACK.

 

André Okuma é cineasta e descendente de japoneses
 

Enquadramento
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