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sobre canelas de skatista e o cinema brasileiro

 “Apesar da crise”, o cinema no Brasil está a todo vapor. No centro expandido da cidade de São Paulo, a capital econômica do país, existem dezenas e dezenas de produtoras de audiovisual compostas de exércitos de “Homens-projeto” (como certa vez disse Xico Sá - http://goo.gl/B7pqhf )[i] armados até os dentes com seus notebooks e tablets de última geração carregados de pré-projetos cheios de frases de efeito, modelos minuciosos de planilhas e até citações de Benjamin. Formados nas melhores faculdades de Cinema e cursos de especialização em produção cultural que o dinheiro pode pagar, ao longo da “retomada” do cinema brasileiro transpuseram para as imagens em movimento toda a “realidade” sociocultural brasileira que emerge de programas de TV como o “Brasil Urgente” e/ou o “Esquenta”. Assim, o cinema no Brasil tem se consolidado, colocando frases clichês nas bocas e estereotipando corpos de personagens que em suma são representações da classe trabalhadora com o verniz do discurso social e moralizante. Tudo devidamente carimbado, assinado e subsidiado pelo Estado e pelas grandes empresas “preocupadas com a cultura do país”. São hoje, portanto, sob a égide da “Sociedade do Espetáculo”*, os porta-vozes da diversidade cultural e do imaginário brasileiro.

Mas fora do centro (no sentido territorial e filosófico), nas bordas da cidade, ou ainda, nas cidades-borda há certo contra fluxo, se dependessem do Estado o cinema fora do centro não existiria, os fundos municipais de Cultura são em geral uma piada de mau gosto, as deduções fiscais são o conto da carochinha, os editais em geral são burocráticos e altamente competitivos, portanto, pouco acessíveis. Nas bordas, coletivos independentes mesmo na adversidade produzem filmes com suas DSLRs de segunda mão ou nem isso, resistindo igual a “canela de skatista” (como diria Edgar em sua música “Estrela Morta” <https://youtu.be/VMSJayrCWks>), construindo o rolê debaixo pra cima “sem massagem”, pois, nos termos de Rancière, não tem essa fatia da “Partilha do Sensível”** para a periferia, é preciso arrancar ela com a mão, forçando a barra, uma ação política antes de mais nada. A militância artística das bordas frente ao capital chega a ser emocionante, porém, no fundo, por mais que seja duro admitir, isso é romântico demais, o rolê na quebrada é mais complexo. No geral é muito difícil fazer filmes, quiçá viver deles, num mundo de políticas públicas de cultura neoliberais não tem como competir com os “homens-projeto”, a não ser que você se torne um.

É certo que a melhor sequência do filme “Carandiru” sempre será pior que o pior frame do “Prisioneiro da Grande de Ferro”, mas ainda pior que “Carandiru” seria um detento querer copiar o Babenco.

E é aí que a coisa fica estranha, não há nada mais bizarro e triste do que um “homem-projeto” de quebrada, que passa os dias escrevendo projetos, apostando tudo o que não tem nos editais-migalha como se a meritocracia fosse real, para que uma vez na vida e outra na morte ganhe algum edital, tornando-se gradativa e iminentemente um burocrata, reproduzindo o que querem que seja reproduzido. Mas é claro que há exceções, casos de subversão das imposições do edital e da burocracia em detrimento de um trabalho mais interessante no sentido estético e político, mas como dito, não passam de exceções. Para o “homem-projeto” da periferia, citando Paulo Freire, o seu "sonho de oprimido é um dia ser o opressor", e uma vez domesticado, espera ansiosamente o dia em que será cooptado.

 

É obvio que é preciso ocupar estes espaços, mas é preciso questionar, e acima de tudo resistir a essa esquizofrenia. Do lado de cá, é preciso ter a consciência que existe sim a luta de classes e que é preciso romper com os modos de produção do cinema e seus ortodoxismos arcaicos, é preciso negar o discurso do cineasta-burocrata e do estado-faz-de-conta. É preciso superar a estética em detrimento da ética. Aqui DEVE ser outro rolê, o Cinema na quebrada é o cinema “pedreiro” (como certa vez disse o cineasta Lincoln Péricles aqui - http://zagaiaemrevista.com.br/por-um-cinema-pedreiro/ ), do busão lotado, do nó na garganta fruto da repressão policial e do esporro do patrão e não o contrário.

 

E que a nossa precariedade seja pelo menos, libertária.

 

Referências:

*Referência ao Livro “A Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord publicada pela Editora Contraponto do Rio de Janeiro em 1997.

**Referência ao livro “Partilha do Sensível: Estética e política” de Jacques Rancière publicado no Brasil pela Editora 34 de São Paulo em 2009.

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